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Projeto de lei das fake news é jabuti banhado em água-de-cheiro

Data: 26/04/2023 16:00

Autor: Helder Caldeira

imgComo no Brasil a estratégia legislativa para assuntos de redes sociais tem se firmado na feira cotidiana como venda de falsa beleza às ignorâncias, o Projeto de Lei nº 2630/2020 — erroneamente alcunhado de “PL das Fake News” — não vai além da perfumaria. Assim o é porque traduz-se em resposta caseira e simplista para um fenômeno planetário altamente problemático e complexo e sem qualquer mínimo consenso no cenário internacional quanto ao alcance e a profundidade de marcos regulatórios que não resvalem em atos atentatórios a direitos e garantias fundamentais.
 
Para começo de conversa, é preciso deixar bem claro que o termo fake news (“notícias falsas”) foi popularizado com significado que é, em si, falso. É um oxímoro com origem no analfabetismo midiático-informacional. Por princípio, notícia é uma informação verificável de interesse público, produzida por profissionais do Jornalismo e publicada em veículo de comunicação específico para tal fim nas formas física ou digital. Em síntese, portanto, fake news é uma informação falsa, manipulada, produzida por um jornalista — ou por alguém que finja ser jornalista — e publicada em veículo de comunicação ou em algo que, propositadamente, faça parecer tratar-se de um, com o objetivo exclusivo de enganar os destinatários, ou seja, seus leitores.
 
Se eu, advogado, vou às redes sociais e faço uma postagem sobre a minha imensa felicidade por ter fisgado uma truta canadense de 25 kg no rio Cuiabá, resta evidente tratar-se de uma mentira de pescador. O único impacto provável desse enredo fantasioso é de que me torne alvo da pilhéria dos meus alunos na Universidade de Cuiabá. Diferente se eu, como jornalista e sabendo tratar-se de mentira, faço publicar notícia em veículo de comunicação sobre cardumes de trutas canadenses perdidos nas águas quentes do principal rio da capital mato-grossense. Neste caso, configurar-se-ia a fake news e seus impactos seriam incalculáveis, podendo chegar à migração sazonal de populações e até danos irreparáveis ao meio ambiente.
 
Nesse meio de campo, vimos ascender a figura do influenciador digital — os chamados influencers —, cuja projeção nas redes sociais fez dele detentor de um poder maior: ao alcançar, com baixo custo e celeridade, número expressivo de pessoas, suas postagens têm o condão de assumir uma perspectiva de informação. Não raro, tais posts estão atrelados à vantagem pecuniária, auferida a título de engajamento através da monetização promovida pelas plataformas das gigantes do setor de tecnologia — as big techs —, alguns deles com impactos políticos e sociais de grande envergadura, sobretudo quando colocam um alvo nas costas das instituições e da democracia.
 
Não é demais reiterar que uma informação nem sempre — quase nunca! — é uma notícia. Portanto, não se pode chamar de fake news qualquer mentira postada em redes sociais. A designação correta é: narrativa falaciosa, desinformação. À primeira vista pode parecer apenas um preciosismo semântico, mas não é. Toda vez que o legislador não quer efetivamente punir um criminoso — ou quer escolher quem pode e quem não pode ser punido pelo cometimento de um mesmo ato ilícito —, ele tipifica esse crime de forma genérica, especialmente aberta a interpretações que, no limite, geram inépcia e impunidade.
 
O objetivo precípuo do projeto de lei em debate deveria ser o combate à desinformação e punição às pessoas e às empresas que lucram ou são, de alguma forma, beneficiadas pela disseminação de narrativas falsas, com a adoção de mecanismos regulatórios capazes de dar transparência à identidade dos usuários e aos algoritmos que regem a dimensão e o alcance das postagens em redes sociais. Noutras palavras, ao continuar achando que o projeto de lei visa combater fake news, é como se estivéssemos, dolosamente, plantando uma macieira no pequizeiro.
 
Note-se, aliás, que não há uma serpente nesse pé de maçã. Há um jabuti na copa da árvore e é exatamente ele o responsável pela urgência e relevância emprestada à feitura de legislação que já nascerá anacrônica. Em meio à perfumaria de conceitos e ditames, alguém fez incluir, ao art. 22, §8º, a artimanha de que a imunidade parlamentar material estender-se-á às plataformas mantidas pelos provedores de redes sociais. Grosso modo, é dizer que qualquer cidadão poderá ser punido das mais variadas formas quando produzir e promover desinformação, exceto os senadores, deputados federais e estaduais e vereadores. É um perigoso atestado de que os parlamentares no Brasil, no exercício de seus mandatos, só dizem a verdade. Foi Ulysses Guimarães quem cunhou o jargão: “Jabuti não sobe em árvore. Se lá está, ou foi enchente, ou foi mão de gente”.
 
Em xeque, neste momento, está o direito constitucional e convencional à liberdade de pensamento e expressão, compreendido como “liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideais de toda natureza”, sendo vedada a censura prévia, mas sujeito a “responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei” e apenas para assegurar o “respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas” ou, ainda, a “proteção da segurança nacional, da ordem pública, da saúde ou da moral públicas”, proibida também a restrição do direito de expressão por vias indiretas, como “abuso de controles oficiais” ou “quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideais e opiniões”. Por óbvio, ainda que possua uma preferred position no constitucionalismo democrático contemporâneo, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e sob seu véu não se podem esconder discursos de ódio, preconceitos estúpidos, apologia a crimes consagrados e o vilipêndio ao estado de direito e aos pilares da democracia.
 
Não há novidade nessas linhas. Trata-se, tão somente, do art. 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 678/1992, caminhando em perfeita harmonia com os preceitos garantidores de liberdade, cidadania e democracia trazidos pela Constituição Federal de 1988 e reafirmados inúmeras vezes pelo Supremo Tribunal Federal ao longo das últimas três décadas.
 
Há quem diga que o projeto de lei é muito bom. Há quem defenda que ele não é tão bom assim, mas é um avanço. Não tenho esse otimismo político. Na minha humilde opinião jurídica, o “PL das Fake News” é um jabuti perfumado, banhado em água-de-cheiro.
 
*Helder Caldeira é advogado, jurista e escritor. Membro efetivo da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MT. Especialista em Direito Constitucional e Direito Civil. Mestrando em Direito pela UFMT, pesquisador da Cátedra Otávio Frias Filho de Comunicação, Democracia e Diversidade do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor na Faculdade de Direito da UNIC. Autor dos romances “Águas Turvas” (Quatro Cantos, 2014) e “(Quase) Borboleta” (Quatro Cantos, 2020) e coautor nas obras jurídicas “Direitos Humanos Contemporâneos” (Lumen Juris, 2022), “Direitos Fundamentais e Constituição: Olhares Contemporâneos” (CRV, 2023), entre outros. Contato: helder@heldercaldeira.com.br
 
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